Tempos de ECA

Recortes de 1980 a 1993

Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, um dia entre 1980 e 1983, às 5h30. Despertador estridente. Só mais cinco minutinhos. Penso em meu pai operário que já foi à padaria e saiu pra trabalhar. Pulo nas calças jeans e na camiseta que eu mesma pintei. Sento-me à mesa para o café com leite e o pão com manteiga. Minha mãe ouve as notícias no rádio antigo, enquanto prepara um lanche reforçado para eu levar, mesmo dizendo que vou almoçar no CRUSP que é bem mais barato. Penteio os cabelos longos com as mãos e prendo a franja com a presilha tic-tac. O par de tênis molhou na chuva de ontem. Só tenho esse. Seca nos pés. A tiracolo, a bolsa grande de couro com cadernos universitários, estojo, fruta, bolo caseiro, torta de atum no guardanapo de pano. (Ainda não era vegetariana e tinha alergia a gatos.) Sigo para o ponto com um livro na mão. Avisto o ônibus e corro. O motorista me espera. Ele é gentil. Agradeço com um sorriso. Vou em pé, espremida, até o Largo da Concórdia. Leio em pé mesmo. Não existe metrô. De lá sai o Butantã-USP. Aí vou sentada. Lota só no meio do percurso. Quanta mudança, aos 17 anos, de uma hora pra outra. Agora sou estudante da ECA e contratada para meio período no balcão de anúncios do jornal Diário Popular. Como estarei daqui a uns 40 anos? Uma senhora aposentada, com a vida feita, talvez avó? Deu sono. Vou tirar um cochilo e leio depois, porque o caminho é longo.

Na frente da ECA, em 1982, em foto da colega Neide Alonso Caprino

Nesse tempo, o trajeto da vida se construía de forma analógica. Não que fosse melhor. É a saudade boa que fica. A parte ruim acho que esqueci. Li muitas páginas nessas duas horas de ida até a ECA. E foi assim durante quatro anos seguidos, para cursar Publicidade e Propaganda no período da manhã. Depois foram mais quatro na FFLCH à noite e dois na Educação. Voltei à ECA nos anos 90 para fazer Jornalismo, mas já dirigia meu Fusquinha. Nos primeiros anos, para chegar no horário, eu descia na Praça do Relógio e cortava o caminho a pé. Chegava suada, mas o banho seria só à noitinha. Agradecia pela marmitinha da mama, pois nem sempre dava tempo de almoçar no CRUSP. E teria outra maratona na parte da tarde, no ônibus que voltava como Jaçanã, para chegar ao trabalho no jornal.

Valeu pelos lanches e marmitinhas deliciosas, mãe! Na primeira semana de ECA, tivemos o trote cultural. Os veteranos levaram os “bixos” pra conhecer a escola, os espaços da Cidade Universitária e apresentaram os restaurantes. “Tem o cai duro e o sai duro. O cai duro é o CRUSP. Come e cai. E, o sai duro, a lanchonete.” Os preços dos lanches não eram para meu bolso. Ainda nem tinha recebido meu primeiro salário do jornal. O bandejão do CRUSP valia a pena. A comida nem era ruim, mas esfriava na bandeja de inox. Muitos alunos comiam lá. Tanto que a USP parava quando o valor subia centavos de Cruzeiro, moeda da época. Ainda ouço o eco dos gritos de greve geral nos encontros históricos. Caloura da vida, eu não sabia como agir diante de tudo aquilo. Um misto de assustada e curiosa. Os estudantes sentados no chão lotavam a FAU e exibiam faixas e cartazes de protesto. Meu contato com a Libelu foi pelo cheiro do bolo de fubá com erva-doce da minha mãe. Uma das integrantes do movimento, de fala firme, cabelos loiros e bem curtos, me flagrou abrindo o guardanapo de pano que exalava o aconchego de casa. Ela perguntou o que eu estava comendo e ofereci um pedaço. Seu olhar também ficou aconchegante. Falou que minha mãe estava de parabéns. Quando ela me via, sorria e perguntava se tinha bolo de fubá.

Vencer a timidez nunca foi fácil. Apresentar trabalho, falar em público, fazer entrevistas é um desafio até hoje. Gaguejo, mas vou. No começo da ECA, encarei uma greve de metalúrgicos em São Bernardo. Fui com colegas para um trabalho em grupo, levando um gravador e um roteiro de perguntas. Entrevistei alguns grevistas, barbudos e camaradas, e me simpatizei com eles, até porque reconheci a história de meu pai nordestino naqueles rostos. A ECA é esse lugar que me tirou do ostracismo e norteou a minha história. Por isso, sempre me emociono quando lembro desse tempo e do convívio com alunos e professores. Tudo ficou registrado com as lentes do coração. Tenho apenas umas três fotos PB dessa época, clicadas pela Neide, também da turma de 80 de Publicidade e Propaganda e minha amiga até hoje. Foram tiradas para o trabalho de Fotografia, disciplina da professora Rita, em 1982. Só de lembrar vem o cheiro de vinagre do revelador na sala escura.

Os dois primeiros anos foram de matérias básicas com toda a turma reunida. Nessa época, convivi mais com o pessoal de Jornalismo, até porque nesse curso eu tinha uma amiga do colégio, a Rosana Sol, que entrou comigo em Comunicação Social. Era uma turma bem diversa, com alguns alunos de outros estados, como a Nádia de BH, com quem também mantenho contato. Uma das cenas que fotografei mentalmente é a de um rapaz, também dessa turma de Jornalismo, que veste preto da cabeça aos sapatos, o que o deixa ainda mais magro. Os cabelos encobrem sua cara de menino. Eu me identifico com a quietude e a música. Ele está sentado no corredor do prédio principal com um violão, cantando “London, London” do Caetano. Alguns anos depois, ficou famoso. É o Paulo Ricardo. O máximo que conversamos foi “oi” e “tchau”. Meu pai veio de Pernambuco aos 18 anos apenas com seu violão. Dormiu em rodoviária, trabalhou como servente de pedreiro, depois operário no ABC e, nas horas de lazer, dedilhava chorinhos e samba-canção com maestria. Essa é outra história. Só comentei pra dizer que a música sempre esteve comigo, mas não encontrava uma brecha para aprender um instrumento e, quando via alguém tocando, como aquele moço no chão do corredor, eu me conectava com esse sonho que só agora, aos 60, estou realizando com mestras do Ukulele Pandeiro.

Aula de Criação Publicitária, do curso de Publicidade e Propaganda, ministrada pelo professor Dorinho Bastos em 1982 (Fotos: Neide Alonso Caprino)

Na ECA descobri os crimes da tortura. Numa conversa de intervalo, um aluno comentou que tinha sido preso. Não lembro o nome dele, mas seu rosto está na minha memória. Onde eu estava nesse tempo? De 1969 a 1979, fiz o Primeiro e o Segundo Grau no Sion da Vila Maria, colégio de freiras que era subsidiado pelo Sion de Higienópolis. Mesmo vindo de família simples, tive uma boa base para passar na FUVEST. Eu e a Rosana Sol fomos as primeiras alunas do colégio a entrar na USP e, coincidentemente, na ECA. Mas não sabia quase nada sobre presos políticos e tortura. Faltava a base da vida. Como presidentes nesse período, tivemos o trio com os generais Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo, e a bandeira do “milagre brasileiro”. Um colega da ECA, lembro que era de Uberaba, me emprestou o livro Dossiê Herzog que devorei. Em uma prova da professora Nazareth, escrevi uma carta pedindo desculpas, ao Vlado, por estar tão alheia. Essa professora era muito exigente, mas arrisquei e ela me deu nota dez. Eu não acreditei, pois me sentia tão fora do contexto. Sensação de alívio. Agora poderia ouvir essas vozes. Tirar essa opressão. Anistia. Respira!

Então apareceu o HIV. A primeira vez que li sobre a AIDS também foi na ECA, já no final do curso. Estava tirando xerox de um livro no Centro Acadêmico e vi um cartaz no mural. O que me chamou atenção foi o nome SIDA, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, por ser o nome de minha mãe. O que era aquilo? Hoje a gente dá um Google e tem tudo à mão. Tem fake news também, mas é uma questão de checar fontes. Naquele tempo, tínhamos os jornais na banca e os noticiários de tevê e rádio saindo de uma ditadura e os livros na biblioteca. Medo. Mais freio. Perdemos tanta gente pra essa doença. As lembranças vêm como uma avalanche, que chego a perder o fôlego.

Quatro anos em um estalo. E chegou o dia da colação de grau. Breve, sem cerimônia, numa sala da ECA, em uma manhã comum de fevereiro de 1984. Também não tenho fotos. Será que alguém fotografou esse momento? Registrei na memória e a memória falha. Embora tudo simples, guardo a forte emoção daquele dia. O professor Francisco Morel, meu orientador no TCC e na ECA desde a fundação, tinha falecido. Estava triste. Logo depois, nosso colega de turma, o escritor João Carrascoza, ocupou a cadeira do professor de Redação Publicitária. Nesse dia, não havia convidados de minha parte. O matemático Osvaldo Sangiorgi, que na época era professor na ECA, estava agitado e brincou perguntando sobre a tabuada. Eu me escondi com receio de errar. Depois comentou que, embora não fôssemos mais alunos, este título ninguém tiraria de nós: de ex-alunos da ECA. Sabe aquele livro que nos agarra e, quando falta pouco para terminar, dá aquela saudade? Foi assim que me senti. E faltava mais alguma coisa. Por isso, queria continuar. Então voltei e fiz Jornalismo. Parecia falar mais comigo.

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Entre 1989 e 1990, trabalhei na Publifolha da Folha da Manhã. Esse grupo era formado pelos jornais Folha de S.Paulo, focada em política e economia, Folha da Tarde, jornal mais conservador, e pelo sensacionalista NP, o Notícias Populares. “Se espremer, sai sangue”, o povo dizia, sendo que todos pertenciam ao mesmo dono. Dava carona para o professor Proença, que trabalhava na redação do NP. O trajeto era uma aula. No fim, é uma questão de produto e público-alvo. É Propaganda no Jornalismo. No último ano, em 1993, engravidei de meu primeiro filho, o Gabriel. Fiz o curso inteiro até dar à luz, dirigindo meu Fusquinha. Faltou finalizar o TCC. Tranquei. Admiro demais os jornalistas. Fiz pós, mas não voltei ao curso. Segui como redatora em agências de propaganda e agora me dedico ao universo da literatura.

A caloura se enganou sobre esta veterana. A vida não é confortável nem está feita. As decisões não são fechadas. Meus filhos nem sonham em ter filhos. Tenho dois gatos que me adotaram. A alergia sumiu. Aprendi a virar cambalhota e fazer invertida sobre a cabeça. Não me sinto uma senhora e tenho que trabalhar todos os dias pra pagar as contas. Agora nem Jornalismo, nem Propaganda. Os dois? Só sei que minha mente continua fresca, talvez mais borbulhante do que há 40 anos, para focar no que me move: estudar, tocar, fazer circo, criar e escrever.

São Paulo, 4h30, 14 de fevereiro de 2023.

Vilma Gonçalves Martins Schiante (Publicidade e Propaganda – 1980 e Jornalismo – 1990)

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There is 1 comment
  1. Renata Golombek

    Amei!!!!

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