Marcello Giovanni Tassara (1933-2020)

Marcello Giovanni Tassara (1933-2020), graduado em Física pela USP (1963) e em Publicidade pela ESPM (1961), foi pioneiro nos estudos acadêmicos universitários do Cinema de Animação no Brasil. Introduziu a disciplina de Cinema de Animação no Brasil na criação da ECA-USP.

Em 1962, com pinta de galã
Em 1962, com pinta de galã

Desenhista de talento nato, participou da invenção do cinema publicitário em seus primórdios no país, na época um mercado incipiente que crescia junto com a televisão. Criando filmes, truques e animações a partir de 1959, foram milhares de filmes em que Tassara deu vida a palitos de fósforo que marchavam e jogavam futebol; movimentou e animou recortes de jornais e fotografias para contar histórias; fez objetos inanimados, como sacos de café e açúcar, andarem e falarem; desenhou e filmou quadro a quadro espaçonaves com heroínas anunciando grandes liquidações, aviões comerciais levando os brasileiros pelo mundo, elefantes entrando em latas de molho de tomate, agentes especiais usando o poder de óleos automotivos para salvar mocinhas.

Um convite dos cineastas Roberto Santos (com quem já trabalhava na produção de filmes publicitários) e Rudá de Andrade mudou a vida de MGT (como ele gostava de assinar). A dupla estava organizando o Departamento de Cinema, Rádio e Televisão (CTR) da recém-criada Escola de Comunicações e Artes (ECA) que, na ocasião, ainda se chamava Escola de Comunicações Culturais (ECC). A ideia era realizar um filme que seria seu cartão de visitas e mostrasse o potencial do curso. O grande desafio era trabalhar com pouquíssimos recursos e muita criatividade.

Assim nasceu o filme A João Guimarães Rosa, um foto-filme de animação pioneiro, cuja matéria-prima era o fantástico ensaio fotográfico que Maureen Bisilliat produzira no sertão mineiro, a partir de um roteiro de viagem elaborado pelo autor de Grande Sertão: Veredas. Em 1969, o filme teve grande visibilidade e ganhou o prêmio de “Melhor Curta-Metragem” no Festival de Brasília.

Trabalhando em 1970
Trabalhando em 1970

O sucesso na realização do filme trouxe-o, definitivamente, de volta para a universidade com um outro convite – dessa vez para juntar-se aos colegas de cinema e organizar a área de animação do currículo da ECA. A partir de então, mergulhou na experimentação da linguagem cinematográfica, desenvolvendo seus foto-filmes, e praticou o ensino das múltiplas técnicas de animação que dominava. Durante 34 anos, permaneceu como titular da cadeira de Cinema de Animação na ECA, participando da formação de centenas de cineastas. Aposentou-se na compulsória, a contragosto, em 2003.

Mesmo após a aposentadoria, Tassara continuou exercendo atividades de pesquisa e orientando projetos de teses e dissertações na USP e na Universidade Anhembi-Morumbi. Nesta última, colaborou na proposição e implementação de seu Programa de Pós-Graduação em Comunicações.

Foi professor visitante na Università degli Studi di Pisa (Itália), Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha), Universidade Livre de Berlim e École de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris (França). Além disso, atuou como diretor do Departamento de Cinema da TV2 Cultura, da Associação Paulista de Cineastas (Apaci) e da Fundação Cinemateca Brasileira, tendo participado também, em várias ocasiões, do Conselho Técnico Consultivo dessa mesma instituição.

Em 2006, integrou o Grupo Assessor Técnico para a Implantação do IPTV (Internet Protocol Television) – o streaming da USP – para a transmissão ao vivo de eventos da Universidade. A USP foi a primeira instituição da América Latina a contar com um serviço dessa natureza.

Paralelamente à atividade acadêmica, seguiu colaborando na produção de centenas de filmes e animações para o mercado publicitário até o início da década de 1990.

Como autor (roteirista e diretor) produziu cerca de 70 filmes (curtas, médias e longas), tendo recebido prêmios no Brasil e no exterior. Entre eles destacam-se, além do Guimarães já citado, o documentário de longa-metragem O Brasil, os índios e, finalmente, a USP (1986), que discute a história da Universidade de São Paulo, realizado por ocasião do seu cinquentenário, que integra sua tese de doutorado; Povo da Lua, Povo do Sangue – Documento Yanomami 1972-1982 (1984), totalmente constituído de imagens fotográficas de Cláudia Andujar, que recebeu o Grande Prêmio da Cidade de Oberhausen e o Prêmio Especial do “Interfilm Jury” no mesmo festival; e Abeladormecida – entrada numa só-sombra (1978), filme experimental que explora a potencialidade narrativa contida em uma única imagem, parte integrante de sua dissertação de mestrado e a primeira vez que uma obra artística foi aceita na academia dessa forma.

Filmando em 1977
Filmando em 1977

Marcello, meu pai

por Helena Tassara

Nascido em Gênova, em berço de ouro, não teve irmãos. Ficou órfão de pai aos 6 anos e veio com a mãe para o Brasil no início da guerra. Contava, com olhos de horror infantil, que nunca se esqueceu da destruição de Barcelona pelas tropas franquistas na Espanha – triste paisagem vislumbrada ao descer do navio para uma volta de táxi com a mãe, Mercedes Rachelle (italiana nascida na Argentina).

Desde que colocou os pés nas areias da praia de Copacabana, escolheu ser brasileiro. Brasil que ele tanto amava e pelo qual lutou com as armas da poesia e as tintas do cinema. Ao morrer estava muito triste e bravo com o que via acontecer em seu país.

Seu passaporte de entrada no Brasil carrega a data de 23 de maio de 1939. Coincidência ou destino, nesse dia nascia aquela que seria sua mulher, Eda. Conheceram-se na Faculdade de Filosofia da USP, onde os dois estudaram Física. Foram namorados únicos da vida inteira, um do outro. Juntos, tiveram dois filhos – eu, Helena, e Felipe, meu irmão. Pai carinhoso, presente e divertido, era também rigoroso e glutão.

A família cresceu. Aos filhos juntaram-se Daniela e Flávio e ele tornou-se avô queridíssimo de quatro netos – Laura, Alice, José e Vicente – para quem contou muitas histórias de ciência e fantasia. Deixou inéditos livros e contos de ficção científica, gênero pelo qual era aficionado.

Sabia tudo e sabia explicar as coisas do mundo e da ciência como ninguém. Amigos de infância e de juventude, meus e de meu irmão, não se esquecem até hoje das coisas que aprenderam lá em casa, com ele. Gostava de conversar, ensinar e brincar. Criativo e curioso, estava em constante movimento. Tinha um humor fino e um sorriso sutil que não escondia uma ponta de ironia e timidez.

Fez filmes experimentais lindos, pouco vistos e muito premiados, alguns perdidos para sempre num incêndio que destruiu a ECA. Poeta das imagens, em seus foto-filmes as imagens estáticas ganhavam uma outra vida, outro sentido; hoje seu trabalho é objeto de livros e estudos acadêmicos.

Artista múltiplo, desenhava personagens e histórias em quadrinhos, óleos de paisagens lunares, planetas desconhecidos e belas morenas curvilíneas. Também fazia maquetes de grandes edifícios e hipercubos com varetas, e virava as noites preparando as planilhas de filmagem e desenhando no celuloide as animações que filmava quadro a quadro.

Aprendeu a ler e a escrever na Argentina, onde viveu por algum tempo. Era poliglota, tinha um ouvido privilegiado para línguas que estudava por curiosidade e prazer – do esperanto ao russo. Imitava com precisão divertida o cantar dos diferentes sotaques da língua castelhana.

Era um homem gentil, culto e educado. Nunca falou grosserias. Amava viver e lutou com toda dignidade até o último suspiro, sem nunca reclamar. Apesar de gostar muito de Cuba-Libre (drinque feito com rum e Coca-Cola), desde o embargo dos Estados Unidos a Cuba, em represália, nunca mais colocou o refrigerante na boca. E sonhava conhecer Cuba, mas isso não aconteceu. Desde que seus olhos verdes perderam o brilho e os cabelos brancos começaram a cair por causa do tratamento contra o câncer de pâncreas, não mais tirou da cabeça o boné com a estrela vermelha da revolução.

Helena Tassara é socióloga, cineasta e pesquisadora. Aluna de Jornalismo (ECA, 1982), é doutora e pós-doutora em Cinema (ECA-USP) e atua na pesquisa e na curadoria, criação, direção e execução de projetos culturais e de comunicação

Pelos olhos de quem o conheceu

Trabalhando com Calil no primeiro plano
Marcello (ao centro) com Carlos Augusto Calil (à direita), em 1970

A arte da animação era (e ainda é) pouco compreendida, relegada a um status inferior. Vista muitas vezes como uma forma de entretenimento infantil, ou um trabalho estritamente técnico, poucos compreendem a extensão da profissão e dos conhecimentos envolvidos em sua realização. O professor Tassara é um grande exemplo da genialidade mal compreendida: animação não só une técnica e arte, mas requer uma gama infindável de conhecimentos: matemático, ótico, narrativo, gráfico, histórico, artístico e musical – características presentes na carreira do Marcello seja quando trabalhava com outros, assim como nos seus próprios filmes.

João Paulo Amaral Schlittler, professor de Animação do curso Superior do Audiovisual da ECA/USP

preparando filmagem
Preparando uma filmagem, em 1970

Era um professor, um amigo, um mestre. Era avesso a falar de si mesmo, apesar da permanente disposição à alegria, ao convívio, à fraternidade. Perspicaz, discreto, tímido (pude perceber com o tempo), de fina inteligência e senso de humor, responsável pela cadeira de Cinema de Animação no CTR, onde o conheci como aluno, de 1974 a 1978. Chamou-me atenção seu jeito de ser que muito lembrava o de um físico (depois vim a saber que tinha trânsito e atração pela física, além do cinema e da literatura): a barba branca com cavanhaque, o corpo levemente rotundo como o de Galileu (fora magro na juventude, dizia), amante da boa comida e do cinema.

Joel Yamaji, cineasta e técnico do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA

Eda e Marcelo trabalhando juntos
Marcello e Eda trabalhando juntos em 1970

Marcello e Eda
Marcello e Eda em 2000

Marcello não tinha preconceitos, trabalhava com todos os diretores da época, do [José] Mojica a [Rogério] Sganzerla.

Entre as várias vertentes da sua produção havia duas linhas que se destacavam e dialogavam entre si: a experimentação e a poesia.

Eda Terezinha de Oliveira Tassara, esposa e professora emérita do Instituto de Psicologia da USP

Marcelo e Maureen Bisilliat
Com Maureen Bisilliat em 2014

Marcello não falava eu, o eu desaparecia com aquilo que foi a sua vida, a filosofia, a política, a história, a arte, era tudo uma coisa só, sem o seu eu; a vida dele era o que ele era, ele não tinha máscara.

Maureen Bisilliat, amiga e fotógrafa com a qual MGT trabalhou em importantes projetos

Colagem 2021 missa de um ano“Marcello, o que é fusão?”, perguntei aos 18 anos, quando entrei na universidade para estudar Cinema. “Marcello, o que é fade-in?”. “Marcello, como funciona a Higashino?”. Bonachão e paciente, Marcello me ensinou.

“Marcello, que lindas as fotos dessa animação”. Ele me respondeu: “Ah, é da Maureen Bisilliat.” Corri atrás de saber quem era Maureen Bisilliat. Vinte anos depois, fiz uma videoarte, We Sing Dance Love. A colorista foi sua neta, Júlia Bisilliat. Gerações que se encontram no cinema.

Helena Tassara, documentarista, pesquisadora, herdeira do brilho do olhar do pai, foi outro presente que dele recebi, amiga para sempre.

Não tão perto quanto Helena, até bastante distante, convivi com seu filho, Felipe Tassara, diretor de arte, no filme Brincando nos Campos do Senhor.

E ao lado de Marcello, Eda. Frequentei a casa dos Tassaras em aniversários, depois, quando Marcello não era mais meu professor. Na companhia de Cosme e Damião, entre cafés, vi seus netos crescerem. E a minha história com a Helena continua, em outros futuros episódios, mas tudo começou com Marcello.

Kátia Coelho, ex-aluna de Cinema (turma 1978) e professora de Cinematografia no curso de Audiovisual (1999 a 2006)

Entrevista com Rafael Issa
Entrevista com Rafael Issa em 2017

Marcello Tassara: uma das figuras mais influentes da minha época de ECA. Quando quer que a gente se encontrasse, ele sempre tinha uma palavra amiga, um conselho útil que demonstrava sua preocupação com seus alunos, um questionamento incentivador sobre como seguir ampliando nosso conhecimento na área de cinema. De uma família maravilhosa, com quem sempre tivemos uma forte amizade — lembro com carinho de sua presença em meu casamento —, sempre transmitia um astral positivo, que fazia os alunos terem cada vez mais vontade de aprender. Marcelo Tassara não era daqueles realizadores de cinema empolados. Em qualquer informação que compartilhava com os alunos, ele exalava uma experiência inerente de quem viveu, provou e assimilou tudo da sua profissão. Cativava todos ao seu redor, tanto que até hoje lembro de suas palavras, de seu sorriso contagiante, de seu jeito simples e ao mesmo tempo recorrente de se relacionar com as pessoas. Um professor, um profissional, um amigo que todos deveriam ter tido o privilégio de conhecer.

Nilton Sperb, ex-aluno de Cinema, turma 1983

Salvador Messina, ex-aluno de Rádio e TV, turma 1982
Ilustração de Salvador Messina

Salvador Messina, ex-aluno de Rádio e TV, turma 1982

Hasta la victoria (2019)
Hasta la victoria (2019)
Colaboração:

Helena Tassara

Fotos:

Arquivo da família

Depoimentos:

Os depoimentos de João Paulo Amaral Schlittler, Joel Yamaji, Eda Terezinha de Oliveira Tassara e Maureen Bisilliat foram retirados do artigo “Quem foi Marcello Tassara (com dois Ls)?” de João Paulo Schittler publicado no Jornal da USP.

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