A ECA também é… Espeleologia

A ecana Leda Zogbi no Duto do Quebó, em Nobres, Mato Grosso (foto: Csaba EGRI)
A ecana Leda Zogbi no Duto do Quebó, em Nobres, Mato Grosso (foto: Csaba EGRI)

Apaixonada por cavernas, Leda Zogbi dedica-se a preservá-las

Entrevista com Leda Zogbi (Publicidade e Propaganda, 1982), que saiu da ECA para explorar cavernas e transformou a atividade em “missão de vida”
Leda fala sobre o potencial espeleológico do Brasil durante o 36º Congresso Brasileiro de Espeleologia (foto: Sociedade Brasileira de Espeleologia)
Leda fala sobre o potencial espeleológico do Brasil durante o 36º Congresso Brasileiro de Espeleologia (foto: Sociedade Brasileira de Espeleologia)

ÁgoraECA: Como foi a sua saída da ECA e a entrada no mercado de trabalho? 

Leda Zogbi: Terminei a ECA em 1985 – e desde antes de entrar na faculdade eu já trabalhava. Como estudei em colégio francês, falo fluentemente a língua e sempre trabalhei em empresas francesas. Quando terminei a ECA, acabei não indo para a área de Publicidade. Trabalhei primeiro numa marca de luxo francesa, Charles Jourdan, depois abri um escritório de representação de calçados e bolsas, e quando a Zélia Cardoso travou o dinheiro de todo mundo, acabei indo trabalhar na Citroën, no início do governo Collor. Nesse mesmo ano é que comecei a ir para as cavernas.

Gruta do Lago Azul, Mato Grosso do Sul (foto: Marcelo Krause)
Gruta do Lago Azul, Mato Grosso do Sul (foto: Marcelo Krause)

ÁgoraECA: Como foi o seu primeiro contato com a Espeleologia?

Leda Zogbi: Foi em 1992. Fui jantar na casa de uma amiga de longa data, e ela tinha visto no jornal que havia uma excursão para as cavernas do Petar (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira). Na hora topei, e fomos de ônibus para o Petar. Fomos primeiro na caverna de Santana, que tem algumas adaptações para o turismo, como passarelas e escadas de madeira. Já achei maravilhosa a caverna. Depois fomos para outra, que se chama Água Suja. Para chegar lá, você precisa seguir uma trilha na mata e atravessar algumas vezes o Rio Betari, a pé mesmo. Você já se molha na trilha e depois entra na caverna pela água mesmo. Fiquei alucinada! As cores da rocha, a água, as formações… Tudo maravilhoso! Depois de 15 dias, voltei levando diversos amigos. E assim continuei voltando ao Petar sempre que possível, primeiro pela agência Venturas e depois por conta própria. Sempre contratando o guia local Jurandir Aguiar dos Santos, o Jura. Ele me levou a todas as cavernas horizontais que conhecia, e um dia, numa trilha, me disse que eu precisava fazer um curso de vertical para conhecer abismos e outras cavernas cujo acesso só era possível por corda. Logo em seguida, ia ter um Encontro Paulista de Espeleologia (Epeleo) no Petar. Acabei participando do encontro e fazendo o curso de técnicas verticais. Conheci diversos espeleólogos e entrei num grupo de espeleologia. Isso foi em 1998.

Caverna da Água Suja, em Iporanga (foto: Mirjam Widmer)
Caverna da Água Suja, em Iporanga (foto: Mirjam Widmer)

ÁgoraECA: Como você descobriu seu interesse pela área?

Leda Zogbi: Na verdade, eu me apaixonei pelas cavernas desde a primeira vez que pisei em uma. Mas depois resolvi que não era suficiente eu visitar as cavernas, eu queria ajudar a preservá-las. São ecossistemas frágeis, praticamente desconhecidos, e que podem sofrer diversos impactos, como turismo desordenado, poluição com lixo e agrotóxicos, mineração, assoreamento, entre outras coisas. Quando entrei no grupo, aprendi a mapear as cavernas. O mapa é a carteira de identidade de uma caverna. Sem ele, é impossível saber o tamanho da caverna e para onde ela se desenvolve. É a base para qualquer estudo que precise ser feito em uma caverna: de geologia, biologia, arqueologia, paleontologia, paleoclimatologia, entre outros. Com os mapas, podíamos registrar as cavernas em um banco de dados da Sociedade Brasileira de Espeleologia, e a caverna passava a existir oficialmente. Então era um bom caminho para começar a caminhar nessa direção da preservação.

Caverna da Água Suja (foto: Marcelo Andrê)
Caverna da Água Suja (foto: Marcelo Andrê)

ÁgoraECA: Quais são os temas principais abordados nesse seu trabalho?

Leda Zogbi: Eu segui nessa ideia de mapear as cavernas. Quando comecei a mapear, usávamos fita métrica, aquelas de 30 m, para medir as cavernas, mais bússola e clinômetro, instrumento para medir o azimute (a direção) e a inclinação de cada visada. As técnicas de desenho também eram analógicas, feitas no papel vegetal. Naquela época eu trabalhava numa empresa que me disponibilizou o Corel Draw. Resolvi tentar usar o Corel para desenhar as cavernas. Demorou uns seis meses para eu desenhar uma caverna de 300 m (que hoje faço em um dia!). Mas foi um aprendizado, e na época eu desenhava tudo no ponto a ponto com o mouse. Hoje uso um tablet de digitalização, que me permite desenhar à mão livre, isso agiliza demais o processo de desenho do mapa final. Temos disponível uma trena a laser, que em um clique faz todas essas medidas e ainda transfere por bluetooth para um tablet. Apenas como referência, daquela época até hoje, já desenhei 297 mapas de cavernas, representando graficamente 91 km de condutos subterrâneos, em 21 estados brasileiros.

Em 2015, estive em um encontro de fotógrafos de caverna na Turquia e tive a ideia de convidá-los para fazer uma expedição ao Brasil para retratar as cavernas brasileiras. Como publicitária, achei que precisava vender a ideia menos tecnicamente, e fazer fotos profissionais seria um método muito mais eficiente para sensibilizar um número muito maior de pessoas. Assim, nasceu o projeto “Luzes na Escuridão”. Organizamos uma primeira expedição em 2016, para São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Bahia. O livro, em quatro línguas, foi lançado no Brasil e na Austrália em 2017. Depois fizemos uma nova expedição para o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul em 2019 e lançamos o livro no Brasil e na França em 2021-22.

Caverna Pobo Jari, Mato Grosso (foto: Kevin Downey)
Caverna Pobo Jari, Mato Grosso (foto: Kevin Downey)

ÁgoraECA: Como você consegue apoio e segue em frente realizando as pesquisas de campo?

Leda Zogbi: Até 2021, 100% das nossas viagens de mapeamento foram arcadas pelos participantes das expedições. São todos voluntários e bancam tudo para fazer o trabalho. Naquele ano, fizemos um projeto para conseguir apoio no mapeamento da Caverna Paraíso, a maior caverna da Amazônia brasileira. Esse apoio foi extremamente importante pois os custos de passagens aéreas, principalmente, inviabilizam a participação da maioria dos espeleólogos do grupo. (Muitos são estudantes, inclusive, fazendo mestrado ou doutorado.) De 2005 a 2021, mapeamos pouco mais de 4 km dessa caverna, e desde que conseguimos o apoio, em 2021, já mapeamos mais de 3 km de novos condutos. A caverna está hoje com 7,5 km e está longe de terminar.

No caso dos livros, o primeiro volume enquadramos na Lei Rouanet, e saímos em busca de patrocínios. Não conseguimos nada, esse mercado é muito profissionalizado, todas as verbas são pré-reservadas com muita antecedência. Acabamos conseguindo patrocínio de empresas privadas, trabalhando na modalidade de pré-venda, ou seja, recebemos a verba em troca de um número estabelecido de exemplares, para os quais desenvolvemos uma sobrecapa personalizada. No primeiro volume conseguimos o apoio da Renault e da Localiza, e no segundo volume conseguimos da Documenta Pantanal (ONG que apoia a divulgação cultural relacionada ao Pantanal), da Scurion (empresa suíça que fabrica as melhores lanternas de espeleologia do mundo) e também do Cecav (órgão do governo que cuida das cavernas). Para o terceiro volume, cuja expedição está agendada para 24 de junho de 2023, já conseguimos metade do valor necessário, também com o Cecav. Estamos buscando outros patrocinadores para complementar o valor que falta. Vale dizer que o projeto “Luzes na Escuridão” é sem fins lucrativos e que toda a verba angariada na venda dos livros é reinvestida no próximo volume.

Manifestação contra o decreto 10935-22 (foto: Leda Zogbi)
Manifestação contra o decreto 10935-22 (foto: Leda Zogbi)

ÁgoraECA: Qual é o envolvimento político nas questões que você enfrenta na área?

Leda Zogbi: Não existe uma lei que proteja as cavernas. A Constituição diz que as cavernas são bens da União e que devem ser preservadas, mas é genérico demais. Há muitas pressões econômicas violentas para liberarem a destruição das cavernas, pois as mesmas se encontram em rochas com grande valor econômico, como minério de ferro e calcário (usado para fazer cimento, corretivo de solo, etc.) Até 2008, nenhuma caverna podia ser destruída. Naquele ano, o Lula assinou um decreto (No. 6640) definindo que as cavernas deveriam ser categorizadas por relevância. As de baixa relevância poderiam ser destruídas sem nenhuma compensação. As de média relevância poderiam ser destruídas mediante pagamento de um valor estipulado pelo órgão ambiental. (Esse valor deveria ser utilizado em ações de preservação de cavernas.) Para destruir uma caverna de alta relevância, o empreendedor deveria adquirir e preservar uma área contendo duas cavernas de alta relevância. As de máxima relevância não poderiam ser destruídas. Posteriormente, foi feita uma Instrução Normativa regulamentando esse decreto. Em janeiro de 2022, o presidente Bolsonaro assinou um outro decreto (No. 10935-22) que liberou a destruição de cavernas de máxima relevância, que são as mais importantes do país, desde que o motivo fosse “utilidade pública”! Fizemos uma manifestação na frente do Supremo Tribunal Federal (STF), publicamos artigo na Science, mobilizamos a mídia, até que o ministro Ricardo Levandovski suspendeu parte do novo decreto. Desde então, tudo ficou parado para julgamento no STF.

Gruta da Cerquinha, Nobres, Mato Grosso (foto: Victor Ferrer)
Gruta da Cerquinha, Nobres, Mato Grosso (foto: Victor Ferrer)

ÁgoraECA: Como se faz o mapa de uma caverna?

Leda Zogbi: Trabalhamos com uma equipe de no mínimo duas pessoas, mas idealmente três ou quatro. A primeira coisa que fazemos é pegar um ponto de GPS perto da entrada da caverna. É desse ponto que começamos a medir, primeiro externamente até a entrada da caverna e depois na parte interna. Trabalhamos com um equipamento que se chama Disto-X, uma trena a laser Leica modificada, que não apenas lê a distância, mas também a direção e a inclinação. Uma pessoa fica com a Disto X (o instrumentista), e outra pessoa (o “ponta de trena”) caminha para dentro da caverna para escolher um ponto, que pode ser na parede, no teto ou no chão, para estabelecer uma base topográfica. Ela marca e identifica esse ponto com uma fita plástica, numerando cada base. Depois coloca em cima da base um anteparo plástico. O instrumentista aponta o laser do equipamento para o alvo e faz a medida. Essa medida pode ser anotada manualmente ou enviada por bluetooth para um tablet. Quem registra essas medidas chamamos de anotador. Em cada base também medimos as distâncias para cima, para baixo e laterais. A quarta função, e mais complexa de todas, é a do croquista, que desenha as paredes e indica quando é descida, subida, se tem blocos, formações, lagos, rios, etc. O croquista trabalha com transferidor e régua, representando tudo em escala e na direção indicada. Depois dessa primeira visada, o instrumentista caminha até a base topográfica, e o ‘ponta de trena’ continua adiante para escolher uma nova base. Assim aos poucos vamos medindo todos os condutos da caverna. É um trabalho de equipe, lento, e cada função é muito importante pois qualquer erro pode gerar um grande retrabalho.

Depois da etapa de campo, pegamos todos os dados anotados na planilha e lançamos num programa especial que gera a linha de trena e as laterais, que exportamos em um formato vetorial para um programa de desenho (que pode ser o Corel, Illustrator, AutoCAD, etc), e o croqui é passado a limpo nesse programa de desenho. Depois calculamos o desenvolvimento da caverna e o desnível, ou seja, a diferença entre a base mais alta e a base mais baixa. Quem tiver interesse em apreender a fazer mapas de caverna, desenvolvemos tutoriais que estão disponíveis no site do grupo, Meandros. Veja aqui os materiais necessários para mapear uma caverna.

Icnofósseis no teto, Caverna Pobo Jari, Chapada dos Guimarães (foto: Victor Ferrer)
Icnofósseis no teto, Caverna Pobo Jari, Chapada dos Guimarães (foto: Victor Ferrer)

ÁgoraECA: O que você e sua equipe esperam para o futuro?

Leda Zogbi: Desde janeiro de 2021, vimos lutando para a revogação completa do decreto N° 10935-22 e acreditamos que, com o novo governo, vamos conseguir. Mas continuamos vulneráveis, ou seja, dependendo de decretos do Executivo. Precisamos de uma lei que garanta a conservação do patrimônio espeleológico brasileiro. Parece simples, mas não é! Há muitos anos lutamos por isso. São muitas forças contrárias, e a negociação com o poder econômico não é fácil. Mas temos muitos especialistas em diversas áreas da ciência envolvidos nesse tema e esperamos conseguir chegar a uma solução que garanta a proteção do que realmente importa. Continuamos na luta nessa direção.

Para junho de 2023, estamos organizando uma nova expedição para registrar as cavernas da Amazônia. Planejamos visitar os estados do Amazonas e do Pará e registrar imagens de cavernas em três diferentes rochas: arenito, calcário e minério de ferro. Vai ser uma experiência única, e com certeza o terceiro volume de “Luzes na Escuridão” vai desvendar muitas maravilhas, que as pessoas nem sonham que possam existir.

Sobre Leda Zogbi

Formada em Publicidade e Propaganda pela ECA em 1985, Leda Zogbi foi executiva na indústria automobilística de 1992 a 2022. Também em 1992 se iniciou na espeleologia, especializando-se no mapeamento de cavernas, atividade à qual dedica a maior parte do seu tempo livre. Nesse período, perto de 300 cavernas foram topografadas em 21 estados brasileiros, somando mais de 91 km de condutos subterrâneos mapeados. Sócia-fundadora do Meandros Espeleo Clube, Leda tem participação ativa na proteção das cavernas brasileiras. Ela possui grande experiência internacional, tendo participado de congressos de Espeleologia e de explorações de cavernas em diversos países. É autora dos livros: “Espeleologia – Noções Básicas” (2005) e “Michel le Bret, Francês e Brasileiro, Espeleólogo e Desenhista” (2006), ambos pela Redespeleo Brasil; e dos livros de fotografias “Luzes na Escuridão” – volumes 1 e 2, publicados respectivamente em 2017 e 2021, pela Estalactite Editora.

“Luzes na Escuridão”, volumes 1 e 2
“Luzes na Escuridão”, volumes 1 e 2
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