
Cinéfilo, fã, apaixonado pelo cinema e pela cultura brasileira. Assim sempre foi Cacá Diegues, o cineasta do Brasil. Cineasta do afeto, da generosidade, do olhar sobre o Brasil, tanto o urbano quanto o profundo, o que caminhava pela Croisette (a lendária avenida beira-mar de Cannes) com a mesma naturalidade com que andava pela avenida Atlântica, o Vidigal e a avenida Paulista, a Amazônia, o sertão.
Cacá ao lado dos cinemanovistas tinha objetivos grandiosos e também singelos. Queriam “mudar a história do cinema, mudar a sociedade brasileira e mudar a vida da humanidade no planeta”.
Mas também queriam retratar o cinema do real, muito inspirados no Neorrealismo Italiano e sua busca por trazer para o centro da tela e da história o homem e a mulher comuns, o cidadão que luta por sua sobrevivência, sua liberdade, seu amor, suas convicções e crenças.
Se mudar o mundo hoje parece um pouco um sonho exagerado de jovens idealistas, uma coisa é certa: Cacá e o Cinema Novo mudaram a história do cinema brasileiro. Se hoje estamos em uma fase de reencontro e celebração do nosso cinema e da nossa história, prestes a brilhar na cerimônia do Oscar 2025, sem Cacá certamente essa história não seria a mesma.
Mas, para além de sua genialidade como cineasta, há impressões pessoais de Cacá Diegues que traduzem seu estar no mundo, sempre disposto ao novo, sem afetação, sempre aberto ao que as ruas estão dizendo.
Certa feita, em 2017, quando ganhou em homenagem a sua obra e a seus 55 anos de carreira a mostra “Cacá Diegues – Cineasta do Brasil”, com curadoria de Breno Lira Gomes e Silvia Oroz, participou de debate no cine Belas Artes, em São Paulo.
Acompanhado de Arnaldo Jabor, com mediação desta jornalista, além de João Daniel Tikhomiroff e da curadora Silvia Oroz, Cacá Diegues conversou com a plateia sobre o que tornava seu cinema algo tão apaixonado pelo Brasil.
Tanto o Brasil de Ganga Zumba, o líder do Quilombo dos Palmares, no filme homônimo de 1964, quanto o Brasil contemporâneo e em plena transformação de “5 X Favela – Agora por Nós Mesmos”, que ele e a equipe de jovens cineastas de comunidades do Rio apresentaram no Festival de Cannes 2010, com produção dele e de sua companheira, Renata Almeida Magalhães.
Ao final da conversa no Belas Artes, a equipe tinha várias opções de onde jantar, mas Cacá quis conhecer o despojado bar Exquisito, então localizado na rua Bela Cintra, que celebra a cultura latino-americana e exibia um mural imenso, destes feitos pelos pintores de cartaz das fachadas de cinema antigos, de “Bye Bye Brasil”.
Entre empanadas e caipirinhas, a mesa tão descontraída quanto a dos jovens que lotavam o local, Cacá, Jabor, Bruno Barreto, os curadores e outros convidados, conversaram sobre o cinema brasileiro e sobre o quanto finalmente tínhamos uma produção diversa e perene.
“Ficou lindo o mural. Deu saudade dos cinemas de rua e dessas obras de arte que eram os cartazes das fachadas antigas”, comentou ele enquanto tirava um retrato digno de “Bye Bye Brasil”.
Quem quiser matar a curiosidade, hoje o Exquisito está em Pinheiros e ainda ostenta a bela e justa homenagem ao cineasta e a essa obra-prima do cinema mundial, que nos fez viajar com a Caravana Rolidei, do sertão do Nordeste à Brasília, passando pelo coração da Amazônia.

A propósito, “Bye Bye Brasil”, de 1980, foi exibido em cópia restaurada no Festival de Cannes 2024. Em uma sessão de Cannes Classics, sempre lotadas de jovens estudantes de cinema, a emoção tomou conta.
Cacá não pôde comparecer, nem mesmo os produtores do filme, Luiz Carlos Barreto e Lucy Barreto, mas foram representados por sua filha e produtora Paula Barreto e por Marco Altberg, diretor de produção do longa — considerado um divisor de águas na cinematografia brasileira.
“Bye Bye Brasil” mergulhava no Brasil profundo para revelar um país multicultural e fascinante, em plena modernização, que o próprio brasileiro também descobria. “Foi uma jornada inesquecível que revivemos hoje aqui. Não há como não se emocionar com esse filme que faz parte da nossa história”, comentou Altberg para esta jornalista, na ocasião.
Cacá disputou três vezes a Palma de Ouro em Cannes. A primeira em 1980, com “Bye Bye Brasil”, a segunda em 1984, com “Quilombo”, e a terceira em 1987, com “Um Trem Para As Estrelas”. Persona queridíssima do festival, exibiu seu último filme no evento, em 2018, uma sessão especial de “O Grande Circo Místico”, lotada e repleta de afeto.
E mais uma vez, Cacá caminhava ao lado de estrelas, de Thierry Frémaux, o poderoso diretor artístico do festival, da diva francesa Jeanne Moreau, com quem filmou “Joanna Francesa” em 1973, ao lado de figuras como Ellen Burstyn e Jean-Claude Carrière, quando foi júri do festival de Cannes em 1981.
A passagem da equipe de “5 X Favela – Agora por Nós Mesmos”, em 2012, foi outro grande acontecimento em Cannes. Mais de 50 anos depois de “Cinco Vezes Favela” (1962), marco do Cinema Novo, em que Cacá, Joaquim Pedro de Andrade, Miguel Borges, Leon Hirszman e Marcos Farias contaram suas histórias sobre as comunidades cariocas e suas questões cotidianas, Cacá abriu caminho para jovens como Luciano Vidigal, Manaíra Carneiro, Rodrigo Felha, Cacau Amaral e Cadu Barcellos contarem, agora por seus olhares e lentes, suas histórias.
A estreia do filme e dos jovens em Cannes foi um dos momentos memoráveis do Brasil na Croisette, em um período simbólico em que a democratização das verbas e dos meios era (e continua sendo) tema crucial para que o país todo contasse suas histórias.
Hoje, um dos jovens diretores, Luciano Vidigal, lança seu primeiro longa nos cinemas, o lindo “Kasa Branca”, atualmente em cartaz nos cinemas. É isso. Cacá de tantas formas filmou, contou o Brasil e lutou para que o país se visse na tela e que contasse suas próprias histórias. Parece simples, mas generosidade aliada ao talento nem sempre vêm de mãos dadas.
Era esse olhar, generoso, sempre aberto, sempre atento, que fez dele um diretor único. Que seu legado continue correndo o mundo e seus pupilos e pupilas contem cada vez mais suas, e nossas, histórias.
Depoimento de Cacá ao catálogo da mostra “Cacá Diegues – Cineasta do Brasil”:
Sou antes de tudo um cinéfilo. Antes de ser um cinéfilo, fui apenas um fã, a correr atrás dos filmes de meus heróis prediletos, me apaixonando por suas heroínas. Só depois comecei a reparar que todo filme tinha um responsável principal por sua qualidade, que o assinava como “diretor”.
Mas a ideia de ser um deles só me ocorreu quando, no final de minha adolescência, encontrei, na Cinemateca do MAM, do Rio de Janeiro e nos cineclubes da cidade, um bando de rapazes de minha idade que tinha os mesmos sonhos que eu.
E aí, juntos, decidimos fazer filmes brasileiros que obedecessem a um programa muito simples, de apenas três pontos: mudar a história do cinema, mudar a sociedade brasileira e mudar a vida da humanidade no planeta.
Pronto, o Cinema Novo nascia ali. Depois de 55 anos de cinema, olho para trás com muito orgulho de tudo que fiz, disse e pensei. Meu amor pelo cinema continua intacto e até aumentou com as inevitáveis dificuldades que fui encontrando no meio do caminho. Tudo para mim será sempre novo.

Flávia Guerra é formada em Jornalismo pela ECA (turma 1996) e tem mestrado em Direção de Documentários na Goldsmisths University of London. Além de jornalista, é documentarista, curadora e crítica de cinema. É colunista do UOL e da Band News FM e criadora do podcast Plano Geral, em parceria com Thiago Stivaletti.
Texto publicado originalmente na coluna Splash do UOL em 15/02/2025 e republicado com autorização da autora.
Era 2017. Paulinha Ferraz e Breno Lira Gomes me chamaram para mediar um debate com Cacá Diegues sobre a obra dele. Gelei, mas fui, claro! Que alegria. Um cara tão sábio, generoso, querido. Depois do debate, com convidados ilustres, como Jabor, Bruno Barreto, eu comentei com ele que tinha um bar, que fazia parte da minha vida, criado por amigos meus de facu, que amam a América Latina e o cinema dele. E que havia um mural imenso na parede do bar Exquisito em homenagem a “Bye Bye Brasil”. Ele não quis ir em nenhum restaurante chique descolado ali pertinho do Belas Artes. Ele quis ir no Exquisito conferir o mural. E lá fomos. Aquela mesa tão diferentona sentada no bar, conversando sobre a vida e o cinema brasileiro. Inesquecível. Obrigada, Cacá, por seu cinema, por seus ensinamentos , por sua luta pela nossa cultura e por esse dia no bar. ❤️