
O autor (Jornalismo 1981) lança obra de resgate da memória da turma de 1976 da Faculdade de Direito da USP. A oposição à ditadura, entre outras histórias, compõe o relato do então calouro. Acompanhe a resenha de Fernando Brengel (PP 1982).
As Arcadas. Ah, as Arcadas! Tornar-se aluno da Faculdade de Direito de São Paulo, localizada no Largo de São Francisco, é a realização de um sonho para gerações que se sucedem há quase dois séculos.
Abolicionistas, republicanos, conservadores, revolucionários, centrados e transgressores sabem da importância e do legado construído nos espaços do imponente prédio em estilo neocolonial, um dos cartões-postais da capital paulista, em que estudaram personalidades como Ruy Barbosa, Prudente de Moraes, Monteiro Lobato, Ulysses Guimarães, Miguel Reale Junior e o atual ministro da Fazenda Fernando Haddad.
Uma história das mais ricas, retratada por um de seus atores, o bacharel em Direito, historiador e jornalista José Ruy Gandra. Zé Ruy para os conhecidos e, agora, para quem deseja ganhar intimidade com a sua obra, “O espírito de um tempo de lutas”.
Centrado na turma de 1976, a qual pertencia o autor, a narrativa resgata a memória de um período conturbado. Em meio às feridas abertas pelas mortes de Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho no DOI-CODI, os estudantes vestiram-se da coragem necessária para desafiar o arbítrio. Aos poucos, voltaram a agir às claras, e de maneira continuada, contra os desmandos dos tempos de exceção.
Fruto dessa postura firme e determinada – bem como em resposta ao Pacote de Abril do general-presidente Ernesto Geisel, que em 1977 fechara o Congresso Nacional – o professor da casa Goffredo da Silva Telles foi um dos autores da crucial “Carta aos Brasileiros”, documento lido por ele nas dependências da faculdade. O positivo eco social ao seu conteúdo, que entre outros frisava que a “Ditadura é o regime que governa para nós, mas sem nós”, atraiu para a SanFran e seus discípulos a ira da repressão.
Duas semanas após esse marco da insubordinação ao regime, o secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, coronel Erasmo Dias, cercou a entidade e, com cães, cavalos e a tropa de choque, ameaçou tomá-la à força. O rescaldo da situação pode ser observado no trecho a seguir:
“Foi um dia de medo, mas quase épico em nossas cabeças ainda um tanto juvenis. A PM estava decidida e pronta para invadir as Arcadas. Em meio à fumaça ardente e jatos de tinta vermelha, cantamos o hino nacional a plenos pulmões. Estávamos prontos para o pior. Dizem que o coronel Erasmo só não consumou a invasão por interferência do governador Paulo Egydio Martins”.
Mais tarde, naquele mesmo ano, estudantes e ativistas reunidos na PUC sentiram na pele a realização do intento autoritário, que teve na SanFran seu campo de treinamento. A tropa de um soberbo e truculento Erasmo Dias invadiu as dependências da universidade católica munida não de livros, mas de materiais pouco afeitos a um campus: bombas de gás lacrimogênio, cassetetes e fúria incontida. Muita gente saiu ferida e presa. O oficial em questão, satisfeito por cumprir com esmero a sua tarefa repressiva, vociferou na imprensa ter cumprido ordens e vir a fazê-lo tantas vezes quanto fossem necessárias. Enfim, passou para a História como um homem covarde, detestável, abjeto.
“O espírito de um tempo de lutas”, no entanto, não gira em torno somente de coturnos e baionetas. Na verdade, do começo ao fim é um grande exercício de gratidão. Sentimento que transborda nos relatos dos ex-alunos, nas passagens em que homenageia os funcionários da entidade – entre eles o célebre Vitão, agitador cultural, merecedor de um livro à parte – assim como nas lembranças de professores singulares, mestres que marcaram a vida e a carreira de tantos que testemunharam as suas cátedras. Mais: entre divertidas penduras e icônicas peruadas, o conteúdo convida a conhecer episódios do Centro Acadêmico XI de Agosto. Uma forma simpática e envolvente de fazer o leitor respirar um pouco dos ares acadêmicos, capazes de oxigenar corações e mentes.
Com prefácio de Celso Campilongo, um dos tantos alunos das Arcadas, atual diretor da instituição, José Ruy Gandra estruturou um texto capaz de despertar o interesse tanto dos que vivenciaram o período como, e principalmente, de todos que, de forma vigilante e dedicada, propõem-se a zelar pelos maiores bens de uma sociedade: a liberdade, a democracia e a possibilidade de plantar um futuro que não envergonhe quem quer que seja.

O autor
Jornalista, historiador e bacharel em Direito, José Ruy Gandra formou-se na Faculdade de Direito da USP e cursou dois anos de Jornalismo na ECA, turma de 1981. Autor do sucesso “Coração de pai – Histórias sobre a arte de criar filhos”, lança a sua segunda obra, “O espírito de um tempo de lutas”. Com passagens por reconhecidos veículos de comunicação – Folha de S. Paulo, Veja, Exame, TV Globo – o jornalista é diretor da Gandra Livros sob Medida.
Serviço
“O espírito de um tempo de lutas – Direito USP, Turma 1976-1980: a geração que encurralou a ditadura”, José Ruy Gandra, 190 páginas. Gandra Livros sob Medida, 2025, à venda na Livraria da Vila.

Fernando Brengel é publicitário formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP — ele entrou na turma 1982, mas acabou fazendo o curso de Publicidade e Propaganda com a turma de 1983. É diretor de criação da agência Presença Propaganda e diretor da Empório Barilotto Bebidas & Sabores.


