Jean-Claude por Tata Amaral, cineasta

Jean-Claude Bernardet observa Tata Amaral fotografar em Bonito, 2005 (Heloísa Jahn)
Jean-Claude Bernardet observa Tata Amaral fotografar em Bonito, 2005 (Heloísa Jahn)

Jean-Claude é oceânico

Às vezes eu sinto como se minha vida criativa tivesse começado com minha parceria com Jean-Claude Bernardet.

Começou antes — fiz curtas, escrevi o roteiro de um longa com parceiros maravilhosos. Mas é que Jean-Claude é oceânico!

Em “Um Céu de Estrelas”, ele interpretou meus desejos e criou, junto com Roberto Moreira, uma proposta de colar o ponto de vista da câmera ao ponto de vista da Dalva, a protagonista. Isso orientou todo o meu trabalho de mise-en-scène: o comportamento da câmera, o uso do espaço e muito mais.

Recentemente, encontrei uma carta datilografada: “Senhora dona diretora, eis uma proposta para resolver o pulso quebrado da atriz”… A atriz protagonista, a querida Leona Cavalli, havia se machucado fazendo uma peça. Precisaríamos construir uma situação que justificasse o gesso dentro da história do filme.

Um dia antes de iniciarmos as filmagens, Jean-Claude foi visitar o set. No lufa-lufa da preparação, ele perambulava por ali, olhando atentamente para o espaço, o cenário, os objetos. Deteve-se num quadro de areia colorida, desses que a gente vira e a areia cai formando paisagens. Comentou: “Escrevemos, Roberto Moreira e eu, uma cena em que Dalva pega um objeto azul. Veja, ele se materializou assim! Somos demiurgos, não é?” A última frase continha ironia.

Quando escreveram o roteiro, Jean-Claude não sabia se veria as filmagens. Depois, não sabia se veria o filme pronto. Ele tinha Aids e vivia com uma corda no pescoço, como ele mesmo dizia, “me preparando para morrer a qualquer momento”.

“Só que não morri!”, Jean-Claude constatou num estacionamento subterrâneo na Avenida Paulista, após assistirmos a um filme — talvez com Fernando Bonassi, talvez com Roberto Moreira. “E agora preciso saber o que vou fazer com essa vida.” Isso devia ser em 1996.

Todos sabemos quantas coisas ele fez. Quantos projetos ele acolheu com rigor e generosidade, quantas conversas, quanto de seu tempo e criatividade ele dedicou a todos que o procuravam.

Sou testemunha e vivi esse acolhimento. Juntos, escrevemos a adaptação para a peça teatral “Um Céu de Estrelas”, dirigida por Ligia Cortez, e o longa “Através da Janela”, ambos com Fernando Bonassi. Os roteiros com as cantoras Pepê e Neném, e “Emília”, este em parceria com Luis Alberto de Abreu — ambos não realizados. Ele foi personagem e “provocador”, como se definia, em “O Rei do Carimã”, um documentário sobre meu pai. Escreveu o roteiro do filme “Hoje”, em parceria com Rubens Rewald e, depois, Felipe Sholl. Também fez consultoria provocativa (sim, ele inventou essa função criativa depois de começar a perder a visão) para os roteiros da série “A Mulher que Era o General da Casa” (ainda não realizada) e do documentário “Democracia”, que está prestes a ser realizado. Foi também consultor do nosso Núcleo Criativo, onde desenvolvemos cinco projetos de série e, ao todo, 34 roteiros, durante a pandemia.

Não há uma obra que eu tenha feito sem bater papo com ele; um pedaço da minha vida sem que ele soubesse; ou pedaços da vida dele sem que eu soubesse — ou desse um palpite, ou metesse o bedelho. Mesmo quando ele inventou de fazer paraquedismo ao perder a visão. Eu o recriminava muito, que coisa perigosa! Mas a descrição que ele fazia desta experiência era muito sensual…

Ultimamente, eu não estava lidando nada bem com suas limitações. Eu sofria muito ao vê-lo, voltava para casa chorando. Difícil…

Achava que só na minha companhia ele tomava seu drink escondido.

Bem, lá se foi ele. Um pouco cedo demais para quem anunciava que só morreria lá pelos 93 ou 94 anos. Tantas coisas que fizemos juntos, e algumas delas ele não verá concretizadas. O relançamento de “Um Céu de Estrelas”, recém-restaurado, é uma delas.

Ah, sabe… acho que ele não estava a fim de ir agora. Mas foi.

Tata-Amaral-2

Tata Amaral – cineasta, diretora de “Um Céu de Estrelas”, “Antônia”, “Trago Comigo”, “Sequestro Relâmpago”, entre outros. Sócia da Tangerina Entretenimento e escritora. Foi aluna ouvinte do curso de Cinema da ECA nos anos de 1983 e 1984.

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