
Ele sempre esteve comigo
Minha história com Jean-Claude Bernardet não começou quando me mudei para seu apartamento no Copan, nem mesmo durante as filmagens de “Meio Irmão”, filme de Eliane Coster, no qual fui protagonista e ele, o consultor e provocador sagaz do roteiro.
Tudo começou numa infância cheia de sonhos, quando eu mal tinha dez anos. Minha mãe me presenteou com um livro que guardei como um tesouro: “São Paulo S/A – O filme de Person descrito por Jean-Claude Bernardet”. Eu já respirava cinema, sonhava ser ator e diretor, e acreditava que aquelas páginas me ensinariam a escrever histórias — quem sabe, um dia, a dirigir minhas próprias.
Anos depois, em 2014, formei-me na Escola de Arte Dramática da USP (EAD/ECA/USP). Em 2016, veio o filme “Meio Irmão”, e com ele, Eliane — o elo que me levaria a Jean-Claude. Mas o mais bonito dessa história é que só percebi há poucas semanas: ele sempre esteve comigo. Primeiro, quieto na prateleira, acompanhando meus devaneios de adolescente. Depois, ao meu lado, por quase quatro anos, até semanas atrás.
Poucos dias antes de partir, contei a ele sobre o livro. Rimos daquela coincidência do destino. A vida é mesmo poética: nunca imaginei que um dia dividiria meu cotidiano com o autor daquela obra que guardei como um “mapa” para o futuro.

Em 2022, ao deixar o Crusp após me formar em Letras (Português-Francês) pela FFLCH, estava sem rumo — até que Eliane Coster surgiu com um convite inesperado: morar com Bernardet. Ele não queria cuidadoras, mas aceitou a companhia de um jovem ator que falava francês no seu apartamento. E assim, sem planejar, passei os últimos anos dividindo o ordinário da vida com um dos maiores nomes do cinema brasileiro.
Eu sabia quem ele era, claro. E fazia questão de espalhar: aos amigos, aos desconhecidos, aos meus alunos do Ensino Médio, que passaram a admirá-lo tanto quanto eu. Mas meu orgulho não vinha do teórico brilhante — vinha do homem.
Do Jean-Claude que dividia o pão, as histórias, o silêncio. Do homem que transformava o trivial em algo extraordinário, porque, no fim das contas, é no simples que a vida se revela. Ele foi meu lar. E serei eternamente grato por isso.
Há uma memória que carrego com especial carinho. Certa vez, perguntei àquele homem que se reinventou tantas vezes: “O que você ainda gostaria de ser?” Ele sorriu, e com seu “r” gutural tão francês, confessou: “Querrria ser bailarrrino.” Jean-Claude, aos 90 anos, dançaria no Theatro Municipal. Não chegou lá — partiu pouco antes dos 89. Mas, no meu coração e nos meus pensamentos, ele nunca parará de dançar. É assim que o vejo agora: leve, livre, girando em algum palco invisível, onde a vida é mais do que palavras num livro — é movimento, é arte, é eternidade.
Dança, bailarrrino, dança!


Diego Alexandre Avelino é ator formado pela Escola de Arte Dramática da ECA-USP. Ele entrou na turma 61 e se formou com a turma 62. Entre alguns filmes que participou estão “Meio Irmão”, “Cordialmente Teus”, “Amar Nunca Seca”, “Maníaco do Parque”, “O Animal Cordial”. Também é palhaço e professor de literatura, redação, produção e interpretação de textos e africanidades e já foi professor de francês e teatro.