
Ou como uma passeata nonsense virou notícia de jornal e caso de polícia secreta
Na manhã de 29 de junho de 1984, cheguei à Escola de Comunicações e Artes da USP e encontrei uma movimentação incomum em frente ao prédio principal. O pessoal dos PicaRetas, a chapa anarquista recém-eleita para o Centro Acadêmico Lupe Cotrim, estava em polvorosa. Distribuíam cordas e exibiam uma forca de madeira “portátil” como quem oferece um convite irrecusável a uma aventura. Fiquei surpresa: não me lembrava de nenhum protesto convocado oficialmente, e muito menos de sabermos ao certo qual era a pauta.
Mas, convenhamos, vivíamos tempos de efervescência. O país respirava ares de abertura política, ainda que tímidos e cheios de tensão. Tínhamos acabado de viver as Diretas Já, e a frustração com a rejeição da emenda Dante de Oliveira em 25 de abril ainda ecoava. Qualquer motivo servia para ocuparmos as ruas depois de tanto silêncio imposto.
Foi nesse caldo político e estudantil que nasceu o “Projeto Jim Jones de Suicídio Coletivo”. O nome evocava o caso Jonestown – um evento trágico de assassinato em massa e suicídio coletivo ocorrido em 1978, na Guiana, envolvendo membros de uma seita americana denominada Templo do Povo e liderada pelo pastor Jim Jones. Os PicaRetas, com seu espírito irreverente, decidiram parodiar o episódio para dar visibilidade à ECA – uma escolha, digamos, pra lá de questionável. Mas, na época, o politicamente correto ainda não era uma preocupação no Brasil, o que só veio a acontecer lá pelos anos 1990.
O plano era simples e, como sempre, barato: com o dinheirinho guardado do CA, os PicaRetas compraram cordas, que foram generosamente distribuídas. E lá fomos nós, com forca improvisada e cordas penduradas no pescoço, pegar os ônibus que ligavam a Cidade Universitária à Avenida Paulista, prontos para “morrer” de tanto rir.
O ponto de encontro foi na esquina da Paulista com a Consolação. À medida que os colegas chegavam – uns pelo trólebus da Augusta, outros pela Rebouças – a massa foi crescendo. Não tardamos a fechar algumas pistas. A Polícia Militar, claro, apareceu. Um comitê improvisado negociou, e conseguimos seguir, desde que não bloqueássemos toda a via.
À frente, o Zé Ramos carregava a forca como estandarte. Gritávamos slogans inventivos: “Antes que a ECA tombe!”, “Antes que a ECA acabe!”. Seguimos até as escadarias do Colégio Objetivo, no número 900 da avenida, onde a bateria dos alunos daquela escola se juntou a nós. Foi festa, foi farra, foi irreverência – marca registrada da nossa escola.
No dia seguinte, abrimos o jornal e lá estávamos nós: a tal passeata nonsense havia virado notícia. A mídia deu o tom sério, ressaltando o protesto contra o sucateamento da ECA, a falta de equipamentos e o risco de que nossos cursos minguassem. Nós sabíamos que era isso também, claro. Mas, no fundo, o que tínhamos feito era um gesto performático de humor estudantil – a ECA na rua, visível, ruidosa e criativa.
O engraçado (ou nem tanto) é que, décadas depois, conversando com os colegas para refrescar a memória e escrever este texto, descobri que não foram só os jornais que registraram nossa aventura. O Zé Ramos, fuçando os arquivos graças à lei de acesso à informação, encontrou nada menos que relatórios do SNI sobre o “suicídio coletivo” da ECA. Isso mesmo: nossa passeata chamou a atenção dos agentes do Serviço Nacional de Informações. Época de ditadura que, mesmo em seus estertores, não podia ver estudante na rua que já fazia relatório “confidencial”.
É claro que, como toda manifestação que se preze, o número de participantes é controverso: a matéria da Folha dizia que havia cerca de 80 pessoas. O relatório do SNI estimava que éramos aproximadamente 50 alunos. Pela conta dos organizadores esse número devia bater os 500, com uma margem de erro de 3 pontos percentuais para mais, ou para menos…
Pois bem, aqui estão as provas: as fotos que tirei naquele dia, a matéria do jornal e até as reproduções dos relatórios oficiais do SNI. Uma pequena mostra de como a ECA, com sua irreverência e criatividade, conseguiu em poucas horas ocupar a Paulista, virar notícia – e ainda entrar para os arquivos secretos da ditadura.
E pensar que tudo começou com umas cordas baratas e uma ideia maluca dos PicaRetas…
PS1.: Obrigada a todos que contribuíram com lembranças e dados para que eu escrevesse esse texto – Zé Ramos, Adriana Vera e Silva, Luigi Rocco, Carla Risso. E, se alguém achar a história muito louca, e perguntar se tudo isso aconteceu assim mesmo, vou responder, que nem o personagem Chicó: “não sei, só sei que foi assim”.
PS2.: Esteve nessa passeata? Lembra de mais alguma coisa daquele dia? Conte a sua versão da história pra gente!
Jennifer Monteiro – publicitária formada pela ECA (turma Publicidade e Propaganda 1983)



Sensacional! Parabéns aos envolvidos. Abraços.