Navegando com Totó Ternura

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No final dos anos 90, entre minhas atribuições como repórter de economia e política em Brasília cabiam eventuais entrevistas com o senador baiano Antônio Carlos Magalhães. Sempre que surgia a famosa arrogância do político baiano, eu me valia de um truque para me manter sereno: relembrava as vezes em que fizemos soçobrar seus navios, do alto do Bloco A do Conjunto Residencial da USP (Crusp). Os canhões de “Totó Ternura”, que cuspiam fogo da antena de rádio escondida na cobertura do prédio, destroçavam invariavelmente a nave pirata de “Toninho Malvadeza”, ministro das Comunicações no governo Sarney, na radionovela “As batalhas dos Ares do Sul”. A partir dali, Malvadeza jamais teria força para intimidar alguém da nossa turma.

Totó Ternura, nome da “rádio Livre” da USP (“piratas” eram seus contendores), foi criada em 1985 por estudantes de várias escolas, e especialmente adotada pelos colegas da ECA. Totó simboliza minha passagem pela querida escola (1982-1985). O cachorro bonachão desenhado especialmente para a rádio pelo colega Sylvio Pinheiro, aboletado na gávea do navio, com microfone na mão, marcou esse tempo de inocência, de resistência suave, de companheirismo, de aventuras, sonhos e descobertas.

Na ECA, voltei à adolescência e transcendi para a idade adulta (não em trajetória linear). De lá, saí com laços pessoais e profissionais que perduram até hoje. Lá, conheci o primeiro amor correspondido, a primeira festa de aniversário. Lá encontrei minha companheira de vida, Lu Aiko, e irmãos e irmãs que até hoje trago comigo. Lá, fiz meu rito de passagem entre as feiras da Vila Carrão, Zona Leste de São Paulo, e os tapetes do poder em Brasília, onde atuo há mais de três décadas.

O início foi de algum estranhamento, talvez um estranhamento de classe. Era certamente uma “festa estranha, com gente esquisita”; sem referências negras e quase sem ouvir uma nota semelhante à da minha origem nordestina. Mas, rapidamente, as paredes se abriram, as amizades se fizeram, e iniciei uma nova fase em minha vida, que se divide entre a.E. e d.E; Antes da ECA e Depois da ECA.

Por mais contribuição intelectual que a escola tenha me dado, creio que sua principal função foi forjar o espírito guerreiro para enfrentar o que vinha pela frente. Nesse ponto, não se pode separar a escola do seu contexto, especialmente o caldeirão fervente do Crusp, onde se aprofundava minha convivência com os amigos ecanos. Para estudar, tinha que comer e morar, e para morar, tinha que lutar. E lá estava eu embarcado no movimento estudantil, despido do que ainda restava da postura “apolítica” herdada dos recém-encerrados tempos de Testemunha de Jeová.

Mas a mesma energia que nos movia nos protestos – como o “Antes que a ECAtombe”, realizado na Avenida Paulista por mais verbas para o ensino – alimentava nossas peladas no gramado da escola. Havia uma alegria coletiva que não deixava o cinza da conjuntura contaminar. Essa ECA me deu a base íntima para lutar pelo meu sonho de ser jornalista. Se mais não me deu, foi pela minha própria resistência em baixar algumas barreiras (como o inútil duelo práticos versus teóricos). Mas escola não é ponto de chegada, é catapulta que te lança na vida. A partir desse impulso, vivi um ciclo de duas décadas como jornalista no DCI, Correio Braziliense, O Globo, Jornal do Brasil e Agência Estado.

Depois, em 2005, pelas mãos de dois ecanos (Bernardo Kucinski e André Singer) iniciei o ciclo de assessoria de Comunicação pública, que durou mais uma década, em vários postos nos governos Lula e Dilma. Foi mais um período rico de aprendizado sobre Brasil, gente, política, jornalismo, crise, vida, superação, desprendimento. Período no qual penso ter contribuído um pouco mais para devolver à sociedade parte do que recebi generosamente nos meus tempos de estudante.

Hoje, envolvido com planos e estratégias de reputação de empresas privadas, vez em quando faço uma pausa e olho em perspectiva. Vejo que a Ternura foi um pouco embotada por esses tempos ásperos. Mas penso que há um dedinho de Totó em cada perfil ou plataforma digital que persiste ativo na resistência, na batalha dos algoritmos do Sul.

José Ramos Filho (Jornalismo 1982)

José Ramos (de barba e casaco bege) na passeata “Antes que a ECAtombe”, em 1984, na Paulista  (fotos: Jennifer Monteiro)
José Ramos no apartamento em que morou no Crusp, em 1985 (foto: Lu Aiko)
José Ramos no apartamento em que morou no Crusp, em 1985 (foto: Lu Aiko)

“Na ECA, voltei à adolescência e transcendi para a idade adulta (não em trajetória linear). De lá, saí com laços pessoais e profissionais que perduram até hoje.”

José Ramos em Ouro Preto em 1985, durante a 19ª Jornada Nacional de Cineclubes, em que participou com colegas ecanos
Em Ouro Preto em 1985, durante a 19ª Jornada Nacional de Cineclubes, em que participou com colegas ecanos (foto: Rosali Figueiredo)

“O início foi de algum estranhamento. Era certamente uma ‘festa estranha, com gente esquisita’; sem referências negras e quase sem ouvir uma nota semelhante à da minha origem nordestina. Mas, rapidamente, as amizades se fizeram, e iniciei uma nova fase em minha vida, que se divide entre Antes da ECA e Depois da ECA.”

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Depoimento originalmente concedido a Luiz Milanesi em janeiro de 2017 por ocasião dos 50 anos da ECA e atualizado em abril de 2024 para inclusão no ÁgoraECA.

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